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músico-escritor de canções, nascido em 1975 na Praia da Barra, Portugal www.myspace.com/jorgecruzpoeira

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Não Pise A Relva!

Estávamos a inaugurar a casa de uns amigos. Era noite de Carnaval, o mundo lá fora reagia com avidez à possibilidade de se mascarar. Nós tínhamos montado uma mesa, parafuso por parafuso, desembrulhado pratos, cozinhado ali pela primeira vez. Agora desenrolhávamos nova garrafa de vinho. Foi nessa altura que alguém disse.
- O Henry Miller tornou-me uma pessoa diferente.
Nem era conversa que estivesse a acompanhar, mas deteve-me e fiquei a pensar. Não. Não é o caso. A mim, o Henry Miller tornou-me uma pessoa igual. Acontece com algumas obras, com alguns artistas. No fundo, eles surgem como simples companheiros de viagem, almas que nos confirmam, que nos acalentam e substituem o pensamento por uns instantes. Que nos mantêm a caminhar exactamente na mesma direcção. Com outros, terei descoberto novos mundos, novas mentes, novas possibilidades que me fizeram curvar, redireccionar o leme. Mas não foi esse o efeito do Miller. De tal forma que hoje em dia me sinto relutante em acabar de ler a sua obra. Seria uma perda demasiado grande. É que, com ele, posso entrar em piloto automático e deixar-me ir até ao infinito: o dia em que depois de uma caminhada tão longa, tão rica, tão atribulada se pode ser daquela maneira livre, isento, esmagador.
Como muitos grandes artistas, afirmados pela sua singularidade, Henry Miller foi engavetado num estilo. Porque é demasiado difícil admitir que não se entende, que não se tem tempo, que não se possui a coragem suficiente para fazer a viagem que ele propõe. Assim, romance erótico ou sexualidade são entidades que costumam aparecer nas linhas que aqueles que no carnaval se mascaram de entendidos escrevem sobre Henry Miller. É como o Lynch ser um realizador do absurdo, ou o Dylan um cantor de intervenção. Chamar-se-ia preguiça se, na verdade, não fosse puro medo.
Na minha opinião, o Henry Miller é um dos grandes pensadores do século XX, um aventureiro espiritual que queria saber sempre algo mais sobre o universo, sobre si próprio, sobre o nada que é uno com o tudo. É um expoente de topo do pensamento moderno americano que teve início nos transcendentalistas (Emerson, Thoreau, Whitman) e fez escola com outros vagabundos individualistas como Jack Kerouac ou Bob Dylan. É no fundo, só um velho companheiro. Um viageiro que amou a América e por isso a abandonou para se apaixonar por outros mundos, mais antigos e, de um outro modo, mais sábios. É um filósofo. Um bêbado. Um poeta. Um debochado. Um punk transgressor que de tanto insistir na vida acabou por morder-lhe as entranhas.

«Nasci fanático. Fanático! Lembro-me de me arremessarem essa palavra, desde a infância. Especialmente os meus pais. Que é fanático? É uma pessoa que acredita apaixonadamente e actua desesperadamente de acordo com aquilo em que acredita. Passei a vida a acreditar em qualquer coisa e, consequentemente, a meter-me em trabalhos. Quanto mais palmadas me davam nas mãos, mais firmemente acreditava. Eu acreditava - e o resto do mundo não! Se fosse só uma questão de suportar castigos, uma pessoa poderia ir acreditando até ao fim. Mas o mundo é mais insidioso do que isso. Em vez de sermos castigados, somos minados, escavados, tiram-nos o chão debaixo dos pés. Nem sequer estou a pensar em traição. É um negativismo que nos leva a exceder-nos, que nos obriga a consumir perpetuamente a nossa energia no acto de nos equilibrarmos. Somos tomados por uma espécie de vertigem espiritual, cambaleamos na beira do abismo, o nosso cabelo põe-se em pé e não podemos acreditar que debaixo dos nossos pés se estará a abrir um abismo incomensurável. Isto resulta de excesso de entusiasmo, do desejo apaixonado de abraçar as pessoas, de lhes demonstrar o nosso amor. Quanto mais estendemos os braços para o mundo, mais ele recua. Ninguém quer amor autêntico, ódio autêntico. Ninguém quer que ponhamos a nossa mão nas suas sagradas entranhas - isso é só para o padre na hora do sacrifício. Enquanto vivermos, enquanto o sangue ainda estiver quente, temos de fingir que sangue é coisa que não existe, que um esqueleto sob a cobertura da carne é coisa que não há. Não pise a relva! É obedecendo a esse lema que as pessoas vivem.
Se prolongarmos durante tempo suficiente o equilíbrio à beira do abismo, tornamo-nos peritos na matéria: seja para que lado for que nos empurrem, endireitamo-nos sempre.»
In Trópico de Capricórnio, 1939

2 Comentários:

Blogger Raquel Caldevilla disse...

obrigada por estes bocadinhos de opinião. eu também sou uma menina com curiosidade em conhecer-te, embora sinta que já sei alguns segredos...

permite acompanhar-te na inocência do silêncio*

6 de fevereiro de 2008 às 06:43  
Blogger Mojo Pin disse...

Em primeiro lugar parabéns por tudo aquilo que tens vindo a realizar. Tenho uma filmagem de um concerto na Fnac do NorteShopping em 2004 e desde aí que sigo o teu trabalho. Andei à procura de algo mais antigo mas não consegui encontrar: "O Pequeno Aquiles", se me indicares o local a procurar agradecia, já o ouvi e é um excelente trabalho. Parabéns também por este espaço.*

7 de fevereiro de 2008 às 10:21  

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